Amadeo Bordiga foi um revolucionário comunista italiano, nascido em Nápoles, filho de um agrônomo, formou-se engenheiro. Com 22 anos, em 1911, iniciou sua atuação política na juventude do Partido Socialista Italiano em sua cidade natal, dentro da qual destacou-se como orador e escritor para a ala de jovens radicalizados que veio a se organizar no Círculo Karl Marx - contrários ao reformismo da liderança social-democrata, esses jovens entraram na militância política por meio de uma intensa campanha contra o imperialismo italiano na Líbia, tema que ocupou alguns dos primeiros textos de Bordiga. Anos mais tarde, Bordiga atribuiria ao movimento anti-colonialista, em particular ao socialista Andrea Costa, o mérito de ter lançado as raízes do comunismo revolucionário na Itália.
Assim como os bolcheviques na Rússia, os espartaquistas na Alemanha e os tribunistas na Holanda, essa ala radicalizada do PSI foi o embrião da cisão entre social-democracia e comunismo, essa clivagem que se maturou ao longo da década de 1900 e atingiu o paroxismo nos anos de 1914-1916, em virtude da traição da social-democracia ao internacionalismo proletário na Primeira Guerra Mundial. A luta encarniçada que combateram contra o colonialismo italiano somou-se a uma luta contra a influência do ideário tradicional do republicanismo liberal italiano, o pensamento do Risorgimento, encarnado pela Maçonaria, o ideário de Garibaldi e Mazzini, De Sanctis e Croce: republicanismo, secularismo, liberalismo, livre comércio, civismo, o discurso dos direitos do Homem, a bandeira do progresso universal iluminista. O objetivo primordial era o mesmo que buscavam os bolcheviques ao combater o menchevismo: assegurar a independência de classe do proletariado, recusar o reboquismo.
Não se restringindo à Nápoles, essa corrente atingiu projeção nacional. Organizou-se primeiro como “Fração Revolucionária Intransigente”. Antes e depois da entrada da Itália na guerra imperialista, não se cansaram de combater tanto os intervencionistas (que apoiavam o conflito) como os pacifistas neutros (lemas abstratos e civilizados contra a guerra), defendendo a tese bolchevique do derrotismo revolucionário, isto é, transformar a guerra imperialista em guerra civil. Depois da Revolução de Outubro, enxergando muito próxima uma situação revolucionária e a necessidade de preparar a insurreição, rebatizou-se como “Fração Abstencionista” (passando a publicar o jornal Il Soviet). O nome causa confusões, confundiu até mesmo Lênin. A importância que o abstencionismo teve para eles nunca elevou essa posição ao estatuto de questão de princípios: primeiro, o abstencionismo foi como uma cunha, uma arma que usavam para precipitar as discordâncias entre revolucionários e reformistas dentro de uma conjuntura política específica, acreditando que, na Itália, a configuração de uma situação revolucionária iria levá-los para um contexto similar ao da Rússia de 1908, quando o partido bolchevique usou a tática de boicote eleitoral com sucesso. A discordância entre Bordiga e Lênin durante o Biennio Rosso (o período de agitação revolucionária na Itália em 1919-1921) era tática, de análise da conjuntura italiana, e não de princípios. Apesar do nome, o verdadeiro objetivo da Fração não era fazer o PSI se abster das eleições: era tornar impossível a convivência de reformistas e revolucionários no mesmo partido, era levar à cabo a tarefa que os bolcheviques haviam dado aos comunistas europeus, precipitar a ruptura com a social-democracia e fundar um Partido Comunista.
Com a palavra, Vladimir Lênin, que percebeu isto:
Tive demasiado poucas possibilidades de conhecer o comunismo «de esquerda» na Itália. É indubitável que o camarada Bordiga e a sua fracção de «comunistas boicotistas» (Communista astensionista) não têm razão ao defender a não participação no parlamento. Mas há um ponto em que, parece-me, ele tem razão, tanto quanto posso julgar por dois números do seu jornal Soviete (Il Soviet, números 3 e 4, 18.I e 1.II.1920), por quatro fascículos da excelente revista do camarada Serrati Comunismo (Communismo, números 1-4, l.X - 30.XI.1919) e por números soltos de jornais burgueses italianos que pude ver. Precisamente o camarada Bordiga e a sua fracção têm razão quando atacam Turati e os seus correligionários, que permanecem num partido que reconhece o Poder Soviético e a ditadura do proletariado, permanecem membros do parlamento e prosseguem a sua velha e perniciosíssima política oportunista. Naturalmente, tolerando isto, Serrati e todo o Partido Socialista Italiano incorrem num erro que ameaça com tão profundo prejuízo e perigo como na Hungria, onde os senhores Turati húngaros sabotaram de dentro tanto o partido como o Poder Soviético. Essa atitude errada, inconsequente ou falha de carácter relativamente aos parlamentares oportunistas, por um lado, engendra o comunismo «de esquerda» e, por outro, justifica até certo ponto a sua existência. É evidente que o camarada Serrati não tem razão ao acusar de «inconsequência» o deputado Turati (Communismo, n.° 3), pois o inconsequente é, precisamente, o Partido Socialista Italiano, que tolera oportunistas parlamentares como Turati e Ca.1
Talvez o leitor não acredite em mim quando eu digo que a discordância entre Lênin e os Comunistas Abstencionistas era apenas tática, conjuntural. Mas, então, leiamos as Teses da Fração Abstencionista, de 1920:
7. A participação em eleições para os órgãos representativos de democracia burguesa e a atividade parlamentar, mesmo que se apresentando a todo tempo como um contínuo perigo de desvio, pode ser utilizada para propaganda e a formação do movimento durante o período em que ainda não existe a possibilidade de abater o domínio burguês e em que, como consequência, a tarefa do partido é restringida à crítica e oposição. No período atual, aberto pelo fim da guerra mundial, pelas primeiras revoluções comunistas e a criação da Terceira Internacional, os comunistas colocam como o objetivo direto da ação política do proletariado em todos os países, a conquista revolucionária de poder, fim para o qual toda a energia e todo o trabalho preparatório devem ser dedicados.
Neste período, é inadmissível toda a participação nestes órgãos que funcionam como um poderoso instrumento defensivo da burguesia, destinado para agir no próprio seio do proletariado. É precisamente em oposição à função e à estrutura destes órgãos que os comunistas sustentam o sistema dos conselhos de trabalhadores e a ditadura do proletariado.
Por causa da grande importância que a atividade eleitoral assume na prática não é possível conciliar esta atividade com a afirmação de que esse não é o meio de alcançar o objetivo principal da ação do partido: a conquista do poder. Também não é possível evitar que ela absorva toda sua atividade do movimento, desviando-o da preparação revolucionária.2
Caso a dúvida persista, agora leiamos as Teses sobre o Parlamentarismo, apresentadas pela Fração Abstencionista, também de 1920:
6. Possibilidades de propaganda, agitação e crítica poderiam ser oferecidas pela participação em eleições e na atividade parlamentar durante aquele período em que, no movimento proletário internacional, a conquista do poder não parecia ser uma possibilidade num futuro muito próximo, e quando ainda não se tratava de uma preparação direta para a realização da ditadura do proletariado. Por outro lado, num país onde a revolução burguesa está em curso de progresso e está a criar novas instituições, a intervenção comunista nos órgãos representativos pode oferecer a possibilidade de exercer uma influência no desenvolvimento dos acontecimentos, a fim de fazer com que a revolução termine em vitória para o proletariado.
7. O atual período histórico foi aberto pelo fim da Guerra Mundial com as suas consequências para a organização social burguesa, pela Revolução Russa que foi a primeira realização da conquista do poder pelo proletariado, e pela constituição de uma nova Internacional em oposição à social-democracia dos traidores. Neste período histórico, e nos países onde o regime democrático conseguiu a sua formação há muito tempo, não há possibilidade de utilizar a tribuna parlamentar para o trabalho revolucionário comunista, e a clareza da propaganda, tal como a eficiência da preparação da luta final para a ditadura, exige que os comunistas conduzam uma agitação para um boicote eleitoral por parte dos trabalhadores.3
Em outras palavras, a posição dos Abstencionistas era de que, na situação revolucionária então em curso na Itália, a tomada do poder estava na ordem do dia e haveria uma contradição entre o parlamento burguês e o poder soviético. Bordiga estava defendendo o mesmo que os bolcheviques, quando estes dissolveram a Assembleia Constituinte para entregar o poder aos sovietes. Pode-se dizer que Bordiga entendeu mal a Revolução Russa, que os bolcheviques participaram de eleições em 1917, entre Fevereiro e Outubro; mas então seria não entender que na Itália, ao contrário da Rússia, não havia revolução burguesa, só havia a revolução proletária, ou seja, não havia mais o bloco para concluir a revolução burguesa sob a liderança do proletariado, como na estratégia bolchevique. Em outras palavras, não fazia sentido o proletariado atuar em órgãos burgueses que, no momento, serviam uma função contrarrevolucionária, em um momento em que a tomada do poder estava na ordem do dia, ao contrário dos parlamentos burgueses na Rússia de 1917, que serviam uma função revolucionária. Tanto Bordiga tinha razão que o erro dos alemães de permitir a “coexistência” de conselhos operários e parlamento levaria à sanguinolenta e histórica derrota da Revolução Alemã.
Não foi fácil romper a convivência de reformistas e revolucionários na Itália. Ali a esquerda havia sido forte e forçado o PSI a não apoiar os créditos militares, ao contrário do SPD na Alemanha; mais ainda, em 1920, o PSI votou para aderir à Internacional Comunista. Porém, hesitava em expulsar de suas fileiras os reformistas e oportunistas, como Lênin os exortava a fazer. Havia, na opinião de muitos, a possibilidade de disputar o PSI, transformá-lo num Partido Comunista. Não foi o que aconteceu: em 1921, no Congresso de Livorno, a Fração Abstencionista, o maior dos grupos da esquerda, juntou em torno de si outras correntes do partido e cindiu, fundando o Partido Comunista da Itália, cujo primeiro líder foi Amadeo Bordiga. Esse partido recém-fundado era composto, sobretudo, de três alas: a esquerda, composta majoritariamente pela antiga Fração Abstencionista; o centro, correspondente ao grupo L’Ordine Nuovo de Antonio Gramsci; e a direita, antigos maximalistas liderados por Nicola Bombacci e Angelo Tasca. No comitê executivo que dirigia o cotidiano do partido, quatro dos cinco membros eram da esquerda: Amadeo Bordiga, Ruggero Grieco, Luigi Repossi e Bruno Fortichiari. Um pertencia ao centro, Umberto Terracini.
O partido, formado num momento em que as instituições políticas italianas haviam se desagregado, de profunda crise econômica, de surgimento de organizações paramilitares fascistas e que havia dado oportunidade para extravagâncias da história, como a invasão de Fiume, por Gabriele d’Annunzio, dedicou suas energias para a organização do proletariado para a ação direta, o combate nas ruas, a proteção armada dos órgãos de classe, como sindicatos. Esse jovem PCd’I[4] tinha sua própria ala paramilitar, a Guardia Rossa, que, em aliança com os Arditi del Popolo, mas sem nunca abrir mão de sua própria independência, combatia os esquadrões fascistas e os legionari, protegia grevistas e ocupações de fábrica, bem como atos do partido e eventos sociais.
Porém, o Biennio Rosso chegou ao fim. A onda revolucionária aberta por 1917 estava se esgotando, o capitalismo internacional parecia se estabilizar relativamente. As revoluções na Alemanha e na Hungria haviam naufragado, uma Itália revolucionária estaria cercada por inimigos, as greves diminuíam em número e intensidade. Na Rússia, o fim da guerra civil, a destruição que ela deixou e a insatisfação do grande campesinato tornavam necessária a NEP, uma retomada do plano original que Lênin havia concebido ainda em 1917 em seu texto A catástrofe iminente e como evitá-la, o desenvolvimento de um capitalismo de Estado gerido pela ditadura do proletariado.
Pode surpreender alguns, mas Bordiga foi um dos mais empedernidos defensores da tese leniniana de que a ditadura proletária pode gerir um capitalismo de Estado; e, mais, que era necessário desenvolver o capitalismo de Estado na Rússia, que seria esta a forma de superar a fragmentação camponesa e pequeno-burguesa da agricultura, criando as bases do futuro comunismo. A isso Bordiga aliava, também, sua plena consciência de que, dado o isolamento internacional, era fundamental para o proletariado russo manter a aliança com a enorme massa camponesa, que era inviável um “socialismo em um só país”. Ele resumia sua visão da questão russa dizendo que era preciso, acima de tudo, preservar o conteúdo político da Revolução de Outubro, isto é, manter o poder nas mãos da ditadura do proletariado, manter a aliança do proletariado russo com o proletariado mundial, mesmo que isso implicasse na necessidade de fazer concessões ao campesinato e obrigasse a gerir temporariamente uma economia ainda capitalista[5]. Por óbvio, ele sabia que isso não poderia durar para sempre, mas diante da calmaria na Europa, era a opção que restava. Por outro lado, via ele com grande entusiasmo a ascensão de movimentos revolucionários anti-coloniais e democráticos na Ásia, sobretudo na China e no Irã, tendo elogiado e defendido ferozmente as teses firmadas no Congresso de Baku - isso daria origem mais tarde a sua sistematização do conceito de “revoluções múltiplas” ou “duplas”, uma forma mais generalizada da estratégia bolchevique da revolução ininterrupta em duas etapas.
Em todo caso, o novo período operou um giro nas circunstâncias e favoreceu uma abordagem distinta. A direção do partido italiano colidia com as orientações da Internacional Comunista em importantes pontos táticos, sobretudo a discussão sobre se a frente única poderia ser feita “por cima” (alianças com partidos burgueses, posição da Comintern) ou apenas “por baixo” (atuar conjuntamente nas lutas imediatas, aproximar os trabalhadores, sem subordinar a ação e a linha do partido a um acordo prévio com as direções dos partidos burgueses, posição da Esquerda, defendida por Bordiga). Essa discordância se manifestou com particular virulência com o fortalecimento do fascismo: que análise fazer e como combatê-lo? A teoria apresentada por Bordiga em relatórios para o congresso mundial da Terceira Internacional era, em síntese, que o fascismo não representava um atavismo, um retorno ou uma regressão históricos, mas, sim, a culminação do desenvolvimento capitalista, um movimento que dava um papel ativo a uma pequena-burguesia arruinada e radicalizada e amparado nas condições sociais geradas pela grande indústria capitalista; afirmava, ainda, que o fascismo recebia,. desde seu nascimento, apoio do Estado, sobretudo do exército e da polícia italianos. A conclusão política dessa análise era de que opor ao fascismo uma defesa da democracia era incoerente e contraprodutivo, pois o fascismo não era uma reação feudal, como foi a Vendeia ou poderiam ter sido as Centúrias Negras na Rússia, onde o czarismo ainda era bastante real; o fascismo era um produto da democracia, e, em vários sentidos, uma radicalização de princípios já contidos na democracia burguesa. Mais ainda, era reconhecer que o Estado burguês não serviria de proteção contra o terror fascista, que aliar-se aos liberais para exigir que o governo reprmisse os fascistas com a lei era uma estratégia fadada ao fracasso. Para a Esquerda, derrotar o fascismo requeria derrotar as condições sociais do fascismo; em outras palavras, só a ação direta e de massas do proletariado e a revolução proletária poderiam combater eficazmente o fascismo.
Contraposto a Bordiga, o entendimento de Gramsci era bastante diferente. Sustentava, em termos simples, que a verdadeira base do fascismo era o campo atrasado, os proprietários fundiários, resquícios pré-modernos, que o fascismo era um fenômeno típico de países de industrialização fraca e tardia, como a Itália. Gramsci, em 1921, chegava a afirmar que, em virtude desse caráter basicamente reacionário, as alas fascistas mais ligadas às classes médias urbanas, como a liderada por Mussolini, iriam acabar se aliando com os liberais e com os socialistas para combater o núcleo duro do fascismo apoiado pelos rurais. Naturalmente, também Gramsci acreditava que não era desejável um retorno à democracia liberal, que a derrota final do fascismo só seria realizada com a derrocada do Estado burguês. Porém, sustentava, ao mesmo tempo, ser possível formar uma aliança por cima com os partidos burgueses, socialistas e liberais. Em certo sentido, pode-se analogizar dizendo que Gramsci assentou as bases da visão da luta contra o fascismo como uma segunda revolução burguesa: abriria um processo de luta de um bloco com a pequena-burguesia contra o fascismo, no desenrolar da qual o proletariado poderia tomar posições e, quem sabe, acabar na liderança. Essa concepção acabou por ser sistematizada por outro membro do centro do Partido, Palmiro Togliatti, e orientaria a atuação do Partido no período final da Segunda Guerra Mundial, dentro do Governo de Coalizão Nacional - graças ao qual Togliatti chegou às posições de ministro da Justiça (no governo do democrata cristão Alcide De Gasperi) e vice-primeiro-ministro (no governo do Pietro Badoglio, marechal do exército italiano, comandante de uma campanha de genocídio na Líbia e da invasão da Etiópia, que assumiu o governo depois da queda de Mussolini).
A colisão entre as ideias de Gramsci e Bordiga nesse assunto se manifesta com particular clareza em dois casos de particular importância. Primeiro, sobre se o PC devia ou não integrar os Arditi del Popolo, uma milícia anti-fascista. Bordiga era contra, pois isso implicaria em renunciar à Guarda Vermelha, a força paramilitar própria do partido, e em aceitar adequar a linha do partido às lideranças liberais e democráticas daquela organização. Segundo, quando ocorreu a chamada “Secessão de Aventino”: o jornalista liberal Giacomo Matteotti foi assassinado por fascistas, os opositores liberais ao fascismo decidiram usar isso como evidência de que o fascismo estaria desrespeitando a democracia e causando a bárbarie; como ato de protesto, o bloco de oposição decidiu boicotar o parlamento italiano em 1924, como forma de pressionar o Rei Vittorio Emanuele III a demitir Mussolini da posição de primeiro-ministro. Gramsci, já secretário-geral do partido, defendeu que o PCI deveria se unir a esse boicote - sugeriu, inclusive, a formação de um anti-parlamento, composto pela oposição. Bordiga foi contra, argumentando que era uma tática de política burguesa, que submetia o partido a um bloco com a burguesia e, mais, que seria um gesto inútil. O PCI aderiu ao boicote. O resultado foi catastrófico: o rei não demitiu Mussolini; sem os opositores no parlamento, uma moção de não confiança contra ele foi derrotada e, pelo contrário, Mussolini propôs uma série de leis que aumentavam drasticamente seus poderes e que, ao serem aprovadas sem contestação em um parlamento apenas de apoiadores, consolidou o fechamento do regime e sua ascensão a poderes ditatoriais. Nos meses seguintes, os líderes da Secessão foram sistematicamente perseguidos e presos; as parcas forças paramilitares da oposição, como os Amici del Popolo e a Italia libera, foram destruídas. Como podem ver, Bordiga estava longe de ser um defensor em princípio da abstenção parlamentar e do boicote em qualquer situação, soube bem ver a estupidez dessa tática naquele momento.
Vamos voltar um pouco. Quando o PC foi fundado, a Esquerda de Bordiga era a ala majoritária, muito maior que o centro e a direita somados. Como, então, Gramsci chegou à liderança do partido? A fricção começou em fins de 1922, quando a Comintern, presidida por Grigori Zinoviev, ordenou que o PC se fundisse com o PSI. Exato: o praticamente recém-fundado Partido Comunista, que a duras penas havia conseguido romper com o Partido Socialista, estava recebendo ordens para voltar a se fundir com o Partido Socialista. Bordiga, naturalmente, foi violentamente contra a proposta. A fusão não ocorreu: mas por causa do PSI, onde uma rebelião interna liderada por Pietro Nenni fez colapsar a negociação; uma minúscula fração liderada por Giacinto Menotti Serrati foi expulsa e aderiu ao PCI, em bloco, contra os protestos de Bordiga, que dizia que o partido só deveria aceitar adesões individuais, para manter o centralismo da organização.
No começo de 1923, Bordiga foi preso pela polícia fascista italiana. Da prisão, enviou à Comintern um manifesto no qual defendia sua condução do partido, bem como solicitava que as questões italianas fossem levadas à discussão do pleno da Internacional. Todos os dirigentes do partido assinaram o manifesto - menos Gramsci, que estava fora da Itália, em Viena. Em junho, Bordiga foi excluído da liderança do partido por ordem da Comintern e, em seu lugar, Gramsci foi nomeado, assumindo a liderança ao retornar para a Itália, em 1924. Em maio daquele ano, o partido realizou uma importante conferência em Como e o resultado demonstra a incoerência da situação: a ala de centro, a qual pertencia o líder do partido, recebeu apenas 8 votos; a direita recebeu 10; e a esquerda, agora colocada na oposição por intervenção da Internacional, recebeu 41. A ala de Gramsci não era apenas menor que a de Bordiga, era menor até mesmo que a de Tasca.
No mesmo ano, no Quinto Congresso Mundial da Comintern, Bordiga propôs que o partido russo deveria estar tão subordinado às decisões da Internacional quanto os outros partidos, tema que voltaria a surgir em suas manifestações na Comintern. O Comitê Central do PCI foi ainda mais restrito, com membros expulsos e substituídos por outros militantes mais alinhados com a política de Moscou. Enquanto isso, nas eleições nacionais na Itália, a política de Gramsci havia conquistado 19 cadeiras no parlamento… contra 379 dos fascistas. Não obstante, a Comintern considerou isso um grande sucesso. Pouco depois, a revista Prometeo, editada por Bordiga, foi fechada por restrição de subsídios do partido. A essa altura, a maioria das secretarias regionais e federais do partido ainda estavam com a esquerda; a nova direção se certificou de mudar isso: os líderes regionais eleitos foram sistematicamente substituídos, gerando uma crise notável quando Luigi Repossi, secretário do partido em Milão, foi destituído. Em resposta, um grupo de militantes da esquerda - Onorato Damen, Bruno Fortichiari, Francesca Grossi e Repossi, aos quais se juntou depois Bordiga - fundou o Comitato d’Intesa, com o objetivo de representar as posições da esquerda no congresso do partido. Sob acusações de fraccionismo e traição, os membros foram ordenados a dissolver o comitê ou serem destituídos de qualquer cargo ou função.
Em 1926, a situação chegou a um desfecho terminal e abortivo. Condições de marginalidade impostas pelo recrudescimento do fascismo levaram o congresso a ser sediado na França, em Lyon. Muitos delegados foram presos ou não receberam fundos da Comintern para fazer a viagem. Ao todo, menos delegados estiveram presentes no Congresso que na Conferência de Como em 1924. Para defender as teses escritas por Bordiga, o orador da esquerda foi Ottorino Perrone. Inútil: por uma regra das mais bizarras, os votos de todos os delegados ausentes foram automaticamente atribuídos às teses da direção, isto é, às teses de Gramsci e Togliatti. A vitória da direção, arrancada depois de anos de manobras das mais escusas, nem chegou a ser aproveitada por eles. No mesmo ano, apenas alguns meses depois, o partido foi esmagado pelo fascismo: todos os seus dirigentes foram ou presos ou forçados a fugir para o exílio, as células foram largamente desorganizadas e os sindicatos foram completamente integrados ao estado corporativista fascista.Gramsci e Bordiga foram encarcerados juntos na ilha penal de Ustica. Togliatti fugiu para a União Soviética. Na França, antigos membros do Comitato d’Intesa e militantes da ala esquerda organizaram a “Fração de Esquerda do Partido Comunista da Itália”, que viria a ser rebatizada “Fração Italiana da Esquerda Comunista” em 1935.
Depois de alguns anos morando juntos em Ustica, Bordiga foi enviado para outra ilha penal, Ponza. Gramsci passou por vários presídios até sua morte em 1938, ainda preso. Bordiga foi formalmente expulso do Partido Comunista em 1930 - ficou sabendo pelo jornal do partido. Solto, passou a viver sob vigilância policial, submetido a interrogatórios constantes, isolado de qualquer contato político, à exceção de alguma correspondência com Ludovico Tarsia, antigo militante da esquerda e amigo pessoal, que por essa época havia se mudado para o Brasil.
Esquerdismo, seção VII, última nota de rodapé.
https://www.international-communist-party.org/BasicTexts/Portugue/20TeFrac.htm
https://www.international-communist-party.org/BasicTexts/Portugue/20_2CoIC.htm#5