Se o que está perdura Estais perdidos. Vossa amiga é a mudança. Vossa irmã de armas, a discórdia. Do nada tereis De fazer algo. Mas o grão-senhor Deve ser aniquilado. Do que tendes, abri mão, e tomai O que vos é negado.
O partido é uma ferramente irrenunciável da luta do proletariado. Mais ainda, é uma realidade a que não se pode fugir: só mediante o partido a classe se torna um sujeito político, e na medida em que a classe luta, ela mesma engendra nesse processo a formação do partido. Naturalmente, disso não decorre que ele apareça pronto e preparado para tomar o poder, por assim dizer, “espontaneamente”. Ao contrário, dar ao partido uma organização formal sólida e disciplinada é a tarefa constante dos comunistas, da minoria revolucionária da classe. O significado profundo dessa tarefa, porém, aparece mistificado por concepções burguesas de política e do conceito de classe. Nos comentários - pouco coesos, admito - que seguem, volto-me contra uma forma particularmente danosa da má compreensão do marxismo em muitos militantes que se pretendem revolucionários, sobretudo na juventude. Se ainda me dou ao trabalho é por acreditar que tais erros, ainda que sua existência seja necessária do ponto de vista das derrotas históricas do proletariado, podem ser retificados e evitados, mesmo que tão somente por uma pequena minoria.
A classe, o proletariado, tem duas existências. Por um lado, ela é objeto, é força de trabalho, valor-de-uso para o capitalista, capital variável (contra o capital constante), capital circulante (contra o capital fixo), pelo que, mesmo em sua existência fisiológica, social, os trabalhadores são politicamente geridos como objeto da política (inclusive da biopolítica), como um problema: como manter baixos os salários, como conter a insatisfação, etc. Nessa existência como objeto, a classe é reproduzida em seu ser mais propriamente capitalista, isto é, como classe do modo de produção capitalista. Por outro lado, porém, o proletariado pode ser sujeito político: é a classe revolucionária, a classe capaz de expropriar os capitalistas, capaz de reorganizar o todo da sociedade ao se emancipar, a classe cuja posição estrutural na sociedade capitalista é a alavanca, o fulcrum, da abolição do estado atual de coisas.
A passagem de classe-objeto para classe-sujeito nunca é simples, nunca ocorre sem um longo período de passagem e preparação de uma fase para a outra. Na fase da classe-objeto, pode-se dizer que a classe é meramente imanente ao capitalismo, não pondo jamais em cheque as categorias sociais que fundam esse modo de produção: o trabalho assalariado, a forma-mercadoria, a propriedade privada, a divisão social do trabalho. A função históricas das várias formas de reformismo, da social-democracia ao fascismo, foi sempre manter a classe tão somente como objeto, dissolvendo qualquer sujeito político formado, para manter a classe como massa, como multidão de sujeitos individuais e atomizados, integrados à sociedade como sujeitos de direito e cidadãos da pseudocomunidade política do Estado; por isso, tanto o liberalismo - com a garantia dos direitos individuais e civis -, quanto a social-democracia - com os mecanismos de integração “equitativos” e coletivos dos sindicatos e leis trabalhistas -, quanto o fascismo - com a mobilização da massa na pseudocomunidade nacional ou racial - serviram essencialmente ao mesmo propósito estrutural, à mesma “razão de Estado” do capital. A realização do sujeito-átomo, agente racional, tão sonhada pelo liberalismo culmina na massa que corresponde ao fascismo; a massificação que é tanto precondição como produto do fascismo, generaliza ainda mais o sujeito-átomo; Hitler e Adenauer que se abracem.
Dessas várias catástrofes históricas não se pode absolver a classe alegando, simplesmente, ter se tratado de “manipulação” ou “propaganda” ou “mentira” dos fascistas. Na realidade, como pretendo elaborar mais detidamente em outro ensaio, há, efetivamente, uma irmandade maldita operando nesse fenômeno, a luta operária pode, de fato, descambar para a reação, tornar-se útil ao capital. Na história do avanço das relações burguesas de produção, a luta operária foi mesmo um motor disso, como aponta Wallerstein, tendo sido muitas vezes mais integrativa do que pela abolição do capital. Em momentos de crise, a luta operária podia mesmo ser fascista, disso não há dúvidas. O que Lênin criticou nos comunistas de conselhos alemães, no seu Esquerdismo, sobre separar massas e líderes como se estes últimos pudessem hipnotizar aquelas, também se aplica, lamentavelmente, para estudar os movimentos reacionários e contrarrevolucionários. É preciso, assim, colocar em termos mais profundos os motivos para essa deriva da classe de seu programa, de seu, digamos, “destino” histórico.
Esse “destino” é o programa comunista, não como invenção da cabeça de um homem, mas desdobramento das tarefas que são objetivamente postas ao proletariado no curso do movimento real, a negatividade sempre latente que coloca conscientemente o encontro entre a luta proletária e a abolição das formas capitalistas. Todavia, toda a história do capitalismo atesta que tal “destino”, o programa, não se realiza automaticamente, por si só. Tampouco existe uma correspondência direta entre o crescimento númerico da classe (proletarização) e o avanço do programa comunista; assim como não há, em largos termos históricos, a linearidade e necessidade que o marxismo vulgar uma vez defendeu entre o capitalismo e o comunismo, isto é, o desenvolvimento capitalista não é sempre o desenvolvimento das condições para o comunismo. Digo tudo isso para assentar a necessidade de ruptura com as perspectivas da “continuidade”, todas as ideologias reformistas do progresso, todo aquele otimismo que, dizia Benjamin, é o combustível da social-democracia.
Retornemos à questão da classe. Não me entendam mal: não quero dizer que a burguesia, essa sim, existiria como sujeito. Tampouco a burguesia existe subjetivada como classe: ela não pode existir como classe, apenas como frações de classe. A burguesia invariavelmente precisa lutar internamente, tanto quanto o capital só pode e sempre existe como capitais privados em luta uns contra os outros. A questão é que tal inexistência de um sujeito político consciente é a forma por excelência da sociedade burguesa: é a essa circunstância que corresponde a impessoalidade do Estado burguês, a igualdade formal do Direito e a possibilidade objetiva de democracia como pseudocomunidade. Do contrário, o capitalismo enquanto tal seria impossível, a relação de salário se veria violada pela coerção ou pela dependência, isto é, pela submissão direta, condição na qual o mais-produto não poderia tomar a forma de mais-valor e, portanto, o valor não se valorizaria, que é o mesmo que dizer: não existiria exploração capitalista.
O proletariado pode ser diferente, o proletariado pode existir enquanto classe, mas isso depende de um processo pelo qual as várias frações do proletariado superem suas lutas imediatas e parciais - as lutas puramente econômicas e trade-unionistas, como a luta por aumentos salariais em uma dada empresa ou setor - e crie organizações a nível político. A expressão, hoje tão popular, segundo a qual tudo é político não está errada, pois, com efeito, toda a sociabilidade burguesa é marcada pelo antagonismo, pelas antinomias constitutivas desse modo de produção. Entretanto, entende-a mal quem, por isso, acredita que a estrutura do poder na sociedade burguesa seja homogênea ou plana. Não, a sociedade burguesa necessariamente se articula por processos de generalização-universalização e particularização, um deve reverter no outro e encontrar no particular a mediação para realização do universal. Em outras palavras, a massa e o indivíduo produzem um ao outro e são correspondentes, tanto quanto à existência dos capitais privados corresponde a existência do Estado, como polo totalizador de uma sociedade desagregadora. Ao contrário da burguesia, ligada à defesa da propriedade privada, do controle capitalista dos meios de produção, o proletariado, absolutamente destituído, tem o potencial de formar o sujeito político coletivo para por fim à separação, centralizar a produção social e suprimir as relações de troca.
O processo de constituição da classe em sujeito é longo e não cabe em esquemas simplistas que oponham espontaneidade à organização. Seu desenvolvimento é sempre diacrônico e ressignificante, só pode ser assim, pois o proletariado como sujeito precisa ser, ao contrário da classe como objeto, a força transcendente, que extrapola as formas capitalistas e que, portanto, aponta para fora. Negação e autonegação, supressão, inclusive, do próprio ser proletário. O proletariado revolucionário quer abolir-se a si mesmo e todas as classes ao mesmo tempo. Mas, o proletariado, melhor dizendo, os trabalhadores, só podem começar suas lutas afirmativamente, isto é, por suas demandas parciais e, geralmente, reivindicando suas identidades operárias, pois lhes dá unidade, integridade. O processo pelo qual a classe-objeto (na antiga terminologia idealista, classe-em-si) torna-se classe-sujeito (classe-para-si) é, portanto, o da organização e formação de identidades e unidades mais altas, pelos quais se constrói também uma consciência superior - não uma pré-existente e mesmo deduzida, como no também velho e idealista conceito de consciência de classe (Klassenbewusstsein). É dos operaístas italianos dos anos 1960 o mérito de ter aprofundado o método da enquete operária - no qual o pioneiro foi o próprio Marx - e, por meio dela, ter descoberto a composição de classe. As transformações estruturais na produção capitalista obedecem não apenas aos ditames internos do processo de acumulação capitalista, mas precisa reagir, também, à força de trabalho como exterioridade que deve ser, a cada rotação, reinserida, subsumida no ciclo do capital e impedida de se autonomizar - de se tornar classe-sujeito. O capital, por mais que tente, jamais será capaz de autonomizar-se completamente da força de trabalho; ele é capaz tão somente de distender essa dependência, em distâncias cada vez maiores e relações mais abstratas e opacas - toda a assim chamada “financeirização”, a expansão do capital fictício, consiste nisso - e tampouco é o capital capaz de submeter e tornar dócil a classe trabalhadora para sempre. Se houve uma época - idealmente abstraída - em que os que lutavam contra o capital o faziam da condição de ex-camponeses, de despossuídos, num momento seguinte - tão idealmente abstraído quanto o outro - os trabalhadores poderiam passar a lutar especificamente como proletários, isto é, o capital produzia dentro de si seus antagonistas, assim como produz a crise. O capital é a contradição em processo, para reproduzir-se deve reproduzir também suas contradições constitutivas.
Essa transformação da classe trabalhadora, do ex-camponês despossuído no proletário propriamente dito, é o modelo ideal de um processo que o capital continua fazendo. Assim como os ciclos capitalistas se marcam pela dialética da novidade - entre o novo e o sempre-igual - a reestruturação da produção capitalista também precisa ocorrer ciclicamente, várias e várias vezes, a cada ciclo. Isso que descrevemos foi a passagem da subsunção formal do trabalho sob o capital à subsunção real; naquela o capital toma posse da produção social sem alterá-la em seu interior, nesta, ao contrário, o capital rearticular internamente a produção segundo suas formas, imperativos e necessidades: do artesão à manufatura à grande maquinaria à automação à robotização, etc. etc. etc. A cada ciclo de reestruturação da produção capitalista, o capital precisa reagir à classe trabalhadora: precisa transforma-la e conforma-la às novas condições de produção. Ao mesmo tempo, a própria reestruturação é, frequentemente, meio de derrotar a classe trabalhadora. Aí se encontra o ciclo composição-decomposição-recomposição. Para deixar mais claro meu objetivo, vou retroceder um pouco.
O militante comunista italiano Romano Alquati, ao pesquisar a nova classe operária italiana nas fábricas da FIAT, na década de 1960, notou que existe um “microssistema” atuante já desde o chão de fábrica, relações que existem entre os trabalhadores individuais como reação à organização da produção capitalista e que criam, em latência, a classe como corpo estruturado. Não existe espontaneidade: os atos “espontâneos” da classe já dependem, eles mesmos, de uma determinada organização de baixo pra cima. O proletariado, em realidade, portanto, precisa compor-se em sujeito político revolucionário, montar determinada estrutura relacional interna a si que, correspondendo à produção capitalista existente, possa a ela reagir. O processo de luta autônomo - parcial, imediatista - pode levar a classe até certo ponto, mas não até a revolução, até a derrubada do modo de produção capitalista. Por ora, note-se que os operaístas mostraram brilhantemente que a cada composição de classe corresponderam formas de luta de específicas, fosse a comuna, fosse o soviete, fosse o comitê de fábrica, os cordões industriais. A composição de classe é a ponte ou corrente entre um determinado ciclo de acumulação capitalista e um ciclo de lutas do proletariado. Ciclo de acumulação capitalista - Composição do capital:Composição de classe - Ciclo de lutas.
Foi Sergio Bologna que primeiro utilizou, em concreto, o conceito de composição para uma análise da estratégia revolucionária. Escreveu um genial ensaio sobre o movimento de conselhos da revolução alemã, no qual demonstrou a correlação entre a composição de classe do proletariado alemão e a forma que tomou a revolução na Alemanha em 1918. O próprio Bologna, entretanto, notava:
Assim, o movimento de conselhos operários fracassou não na tarefa de administrar o trabalho produtivo, mas na de estabelecer a relação entre as greves de massas e a insurreição, ou entre a recusa do trabalho e a insurreição. Continuamos ouvindo que a determinação operária da crise de 1918 a 1923 prolongou a recusa do trabalho como um movimento contínuo, sem criar o partido. Porém, sem determinar a crise e sua luta contra o desenvolvimento, o partido não é revolucionário. Assim, o fracasso do movimento dos conselhos operários não adiaou o problema da relação entre autonomia e o partido profissional, mas antes aquela da relação entre luta contra o desenvolvimento e insurreição, por um lado, e poder operário armado, por outro. Vimos na história mais recente quantas vezes a insurreição foi, ao contrário, premissa para a retomada do desenvolvimento. O leninismo é talvez o limite extremo atingido pelo nível insurrecional e pela classe como autonomia em que o partido é ainda uma minoria ativa.2
Bologna termina em um elogio do maoísmo, o qual, segundo ele, teria transformado toda a classe em partido e a insurreição, em guerra. Discordo das conclusões de Bologna, mas nessa proposição do problema em que acabou o movimento dos conselhos operários temos um interessantíssimo ponto de partida: o fracasso da classe de passar para imanência - enquanto administração do trabalho produtivo e das condições que a reproduzem - para a transcendência - a insurreição, o assalto aos céus. Amadeo Bordiga criticou severamente as concepções daqueles que fetichizaram os conselhos operários como reação à contrarrevolução stalinista na Rússia, mostrando que, no conselhismo, o proletariado ainda é reformista e imediatista: após se apropriar de suas condições diretas e imediatas de vida, os meios de produção diretos, não consegue abolir-se enquanto proletariado; é obrigado a estagnar e gerenciar a própria exploração e, no fim, entregar o poder à burguesia. Falta, portanto, o elemento totalizador, o sujeito político coletivo da classe que pode abrir o momento da transcendência, pela insurreição, para lançar o ataque decisivo contra o Estado burguês e criar as condições para a transformação da sociedade como um todo.
A transcendência, para retomar o começo desse texto, é dada pelo “destino” objetivo imposto ao proletariado como encontro de suas lutas - do fator subjetivo - com o movimento interno do modo de produção de capitalista que tende a colocar sempre sua auto-abolição em virtualidade - o fator objetivo. Se, por um lado, o comunismo como movimento militante da seção mais avançada da classe recusa todo universalismo e se põe pelo poder de uma classe, pela ditadura de uma única classe como necessidade incontornável da transição, por outro, o marxismo, como mediação teórica necessária que clarifica esse programa - que, friso, não foi invenção de um homem, mas uma descoberta - toma em consideração a totalidade da formação social e, assim, entende que a classe é parte de um processo, na realidade, desprovido de sujeito - no sentido de sujeito autopoiético, autodeterminante. A sociedade como um todo é o único sujeito, mas, internamente a ela, formam-se sujeitos por processos de subjetivação. Importa-nos que a classe torne-se sujeito político capaz de transcender o modo de produção atual. Entretanto, tal subjetividade não é metafísica, não pode vir de fora desse mesmo modo de produção; isto é dizer que, de algum modo, a classe, agindo estritamente como classe do modo de produção capitalista, precisa produzir o comunismo.
A largas pinceladas, podemos localizar na história do marxismo duas grandes formas de lidar com esse problema. As imanentistas3 pensam na possibilidade de que a luta parcial converta-se automaticamente em luta transcendente ou, dizendo de outro modo, de que o comunismo floresça do desenvolvimento mesmo do capitalismo, como germinação no seio dele, o comunismo já está aqui, basta liberta-lo ou expandi-lo. Essa é a categoria mais larga a que pertencem todos os economicismos - pensemos aqui no economismo criticado por Lênin no Que fazer?, mas também nas demandas transicionais de Trótski, no autonomismo tardio de Antonio Negri e nas ideias “intersticiais” de nomes como Holloway, e, de modo geral, em todos os que viam na racionalização da produção no capitalismo o projeto ou diagrama da produção socialista: sempre que um “marxista” falar que a produção racional e apenas o mercado é irracional; ou, no outro sentido, que a produção é ditatorial e é preciso democratizá-la - Althusser bem apontou que esse pensamento, característico do stalinismo era economismo do mais puro.
A insurreição de que falava Bologna é o momento da transcendência, da ruptura, da negatividade que não admite ser, a priori, contida na positividade do movimento. Assim, a análise crítica de Bologna já se aplica também contra o imanentismo de modo geral, se bem que poderíamos passar em revista um número de marxistas que se colocaram contrários a ele, de Bordiga a Dauvé, mas, como coloca o próprio Bologna, o momento extremo e essencial da insurreição é o leninismo. Lênin é o maior pensador revolucionário da transcendência. A arma dessa transcendência? O partido de classe.
O conceito de partido é complexo para o marxismo e longe de ser reduzível às fórmulas da vulgata stalinista, “centralismo democrático” e assim por diante.
Por um lado, entende-se o partido como uma organização de militantes revolucionários, como uma minoria ativa, como uma seção avançada da classe que se propõe a desenvolver politicamente as demandas da classe e preparar a insurreição. Resumidamente, eis o papel do partido-organização. Entretanto, o partido distingue-se de outras formas organizacionais da história da classe. Devemos perguntar: o que, nele, é diferente dos círculos e sectos que, como disse Lênin, marcaram a fase inicial do marxismo russo? Quero propor uma compreensão da formação histórica do partido de classe com base na dualidade teórica entre os dois conceitos de partido que existem no pensamento de Marx: o partido efêmero (organização, formal) e o partido histórico (programa).
Em uma carta a Ferdinand Freiligrath, de 1860, diz Marx:
Devo apontar d’abord que, depois que a “Liga” foi dissolvida por minha iniciativa em Novembro de 1852, eu nunca pertenci a nenhuma sociedade outra vez, seja secreta ou pública; que o partido, portanto, nesse sentido de todo efêmero, deixou de existir para mim 8 anos atrás.
Por partido em sentido efêmero evidente o que quer dizer Marx: uma organização partidária específica, ou, em outra terminologia, o partido formal. Mas se há partido nesse sentido, significa que Marx também apresenta outro conceito de partido, um partido não efêmero. Na mesma carta, diz ele:
A “Liga”, como a Société des Saisons em Paris e uma centena de outras sociedades, foi simplesmente um episódio na história de um partido que está por toda parte brotando naturalmente do solo da sociedade moderna.
E, no encerramento da carta:
Ademais, tentei desfazer um mal entendido nascido da impressão de que por “partido” eu quisera dizer a “Liga” que expirou oito anos atrás, ou o comitê editorial que foi dissolvido há doze anos. Por partido, eu quis dizer o partido no amplo sentido histórico.
Resta-nos pensar no que significa especificamente esse partido em sentido histórico, amplo. A primeira distinção que esclarece é quanto à duração: o partido histórico representa a continuidade, enquanto o partido formal é efêmero. A garantia dessa continuidade é o programa comunista da classe, descoberto no próprio desenvolvimento objetivo das contradições da sociedade capitalista, como encontro das leis tendenciais desse modo de produção com a luta da classe estruturalmente capaz de realizá-las não apenas virtualmente, mas realmente: capaz de abolir o capital.
Marx diz: partido em seu significado histórico, em seu sentido histórico, e partido formal, ou efêmero. No primeiro conceito se encontra a continuidade, e dele derivamos a característica tese da invariância da doutrina desde sua formulação por Marx; não como a invenção de um gênio, mas como a descoberta de um resultado da evolução humana.4
O programa comunista resulta dessa convergência, contra economismo e voluntarismo ao mesmo tempo. A realidade do partido histórico não é ideal, presente apenas na teoria; antes, é atestada pela histórica convergência e sempre presente renascimento da luta da classe e na consolidação de suas seções avançadas. Onde quer que o proletariado lute, quanto mais ele lutar, mais sólida se formará uma vanguarda prática, formalmente organizada ou não, mas sempre definida em seu atuar com relação à composição de classe.
Essa importante tese de Marx é uma violenta - e fundamental - rejeição do sectarismo e do utopismo, pois o comunismo não é exclusividade de uns poucos iluminados pela ideia correta, mas as tarefas que são objetivamente postas ao proletariado; não aquilo que ele é, mas o que ele é obrigado a ser. O conceito de programa comunista é, portanto, o contrário de uma revelação divina e imposta, não é a utopia nascida na cabeça, como era o socialismo dos pequenos-burgueses anteriores a Marx; nem por isso o comunismo é uma mera descrição da realidade - todos os oportunistas gostariam que assim fosse, um positivismo apologético do que existe. Mesmo no Capital, o trabalho de Marx sempre conteve na crítica da forma capitalista a descrição, em negatio, do comunismo. Pela crítica, pelo negativo, chega-se a uma imagem do comunismo. Essa imagem do comunismo, o programa, é a transcendência de que precisávamos, é o elemento que rompe a lógica meramente continuísta e linear e, sem metafísica alguma, faz explodir o tempo. Assim como o messias de Benjamin, o programa comunista é aquilo que desfaz a aparente linearidade do tempo, arranca o futuro de sua posição e faz com que ele exploda no agora.
Tolice, no entanto, achar que o partido histórico é contrário ao partido formal, que se pode abandonar este em favor daquele.
Quando da doutrina invariante tiramos a conclusão de que a vitória revolucionária da classe trabalhadora só pode ser conquistada com o partido de classe e sua ditadura; quando, com base nas palavras de Marx, afirmamos que sem um partido comunista e revolucionário o proletariado pode até ser uma classe para a sociologia burguesa, mas não é para nós e para o próprio Marx; então a conclusão a ser deduzida é que, de modo a atingir a vitória, será necessário ter um partido digno, ao mesmo tempo, de ambas as características, de partido histórico e de partido formal, isto é, ter resolvido na realidade da ação e da história a aparente contradição - que dominou por um longo e difícil passado - entre partido histórico, portanto quanto ao conteúdo (programa histórico, invariante), e o partido contingente, quanto à forma, operando como uma força e uma prática física de parcela decisiva do proletariado em luta.5
Ou seja, do partido histórico e todas as suas implicações não decorre que o partido formal seja supérfluo, ao contrário, o partido formal é importante precisamente como tentativa consciente e organizada de corporificar o partido histórico. Ou, até, de organizá-lo. É tão somente por uma arma como o partido, essa ferramenta fundamental, que todas as várias seções e frações do proletariado se unificam em uma única organização que dá materialidade à subjetividade da classe. Bordiga estava plenamente correto ao dizer que a classe só entra historicamente em ação ao se constituir em partido político, pois só então ela pode atuar como sujeito. Aquilo que garante que o partido seja revolucionário e comunista é o programa, o partido histórico, o qual a organização partidária, o partido formal, deve ter sempre como objetivo, como horizonte. Não importa ao partido incluir em si uma maioria numérica da classe, o que importa é incluir em si todo o partido histórico da classe, toda a seção avançada e consciente do programa capaz de explodir a linearidade do tempo com sua iniciativa determinada e que não se sujeita a mecanismos de consulta democráticos. O partido deve ser, efetivamente, a vanguarda.
A função principal do partido é organizar a insurreição e a conversão proletariado em classe dominante; impor a ditadura de classe. Apenas na tentativa, na prática, pode ser a contradição entre o partido formal e o partido histórico resolvida. Não há meios de resolver isso no campo teórico: aporias da realidade não se resolvem senão na realidade. Até que essa contradição se resolva, partido algum tem o direito de acreditar já tê-lo feito, de se coroar na posição de partido histórico. Não precisamos duvidar: em outubro de 1917, os bolcheviques resolveram o problema, tornaram-se o partido da classe. Mas, se olharmos para a Alemanha nos anos seguintes, podemos dizer que o KPD o fez? Não, importantes setores avançados da classe continuaram fora do KPD, como os Revolutionäre Obleute. Não vou fingir que há uma resposta fácil a ser dada: “o KPD deveria ter feito isto ou aquilo”.
O objeto desse ensaio, como anunciado pelo título, é combater o partidismo. Como dissemos, o proletariado deve converter-se de classe-objeto, estática, sociológica, em classe-sujeito, dinâmica. Contra o conceito de consciência de classe, tomamos o de composição de classe6. A composição de classe estrutura a classe em períodos específicos e determina as formas e práticas adotadas no combate durante um ciclo de lutas. A composição determina também o microssistema de relações que formam a classe enquanto classe, não enquanto uma massa de indivíduos numa poça amorfa. O Estado burguês, no entanto, formula variadas estratégias justamente para dissolver essa composição de classe, para tornar o proletário um mero cidadão; se não for possível, satisfaz-se em separar a classe em setores e locais de trabalho: sindicatos absorvidos pelo Estado, comitês de fábrica para conciliar empregados e patrões7, etc. O partido em seu sentido histórico é aquele que, subjacente a toda a história da luta entre proletariado e burguesia, por meio do programa, oferece o momento conceitual de transcendência, é a condição para a ruptura, para a cisão com todo o projeto iluminista burguês, com o que podemos rejeitar o humanismo, o legalismo, etc. É sempre em torno desse programa que gira o marxismo.
O partido formal, a seu turno, é a ferramenta pela qual a classe se torna sujeito político, é a organização ativada da composiçãõ de classe segundo o programa comunista. Longe de ser supérfluo, é a perene tarefa da minoria revolucionária. Ela já nasce pronto? Não, sua construção é à qual devem convergir os vários núcleos da seção mais avançada da classe. Quando ele estará pronto? Somente quando ele superar a contradição com o partido histórico, quando incorporar o partido histórico, avançando o programa e arrastando atrás de si, com a iniciativa decisiva, a classe.
O partidismo é a crença tola no partido na acepção burguesa, como uma organização entre outras, de modo que o partido formal toma primazia sobre o partido histórico e, em vez de ser instrumento para a subjetivação da classe, passa a ser como uma gangue disputando espaço e hegemonia na classe. Quer se diferenciar dos outros não em nome do programa, mas em nome da marca, do sucesso na concorrência capitalista. De modo geral, essa é a tendência geral de todas as organizações “revolucionárias” no estado presente de coisas: todos falam “unificar” os comunistas, em “unir” a “esquerda”, mas proliferam-se tantas organizações e grupúsculos quanto marcas de desodorante num supermercado. No nível mais baixo do raciocínio, coloca-se o problema como questão de “relevância”, disputa-se por views e atenção da mídia burguesa. A última moda é a crença no potencial da internet como ferramenta de “mobilização” e “popularização” do marxismo. Sem querer dizer que ela seria inútil, longe disso, mais comum é permitir que a forma, a internet, molde o conteúdo. Tal é o imperativo básico da sociabilidade capitalista: o domínio da forma, que tudo esmaga e conforma a suas necessidades, valor de troca sobre valor de uso. O “popularizadores” do marxismo na internet não são, no mais das vezes, mais que vulgarizadores, tornando o marxismo em mercadoria, não menos do que a URSS e a China o transformaram em ideologia. Espetáculo difuso e concentrado também se aplica ao marxismo.
Em suma, contra as opções das polêmicas estéreis do marxismo-como-identidade da internet, o partido não é dispensável e nem está pronto. Dizer que PCB ou UP é o partido revolucionário, desde já, é tolice. Dizer que uma organização como estão hoje os partidos no Brasil pode guiar uma revolução é bobagem. Ignorar a organização muito real que representam experiências como a Teia dos Povos, o MST, o MTST, o MSTC, a Liga dos Camponeses Pobres e várias outras é imbecilidade. O partido histórico ainda marcha, o partido formal ainda precisa ser construído. Para resolver a contradição, o partido formal em construção precisa buscar incluir em sua força decisiva todo o partido histórico conforme ele marcha de acordo com a atual composição de classe do proletariado e seus aliados revolucionários no mundo hoje. Mesmo um partido do tipo que se limitasse ao Brasil seria ainda imperfeito, desde já precisamos ter como objetivo o partido mundial. As três linhas teóricas que devem guiar a atuação concreta do partido, portanto: 1) a reconstrução do programa comunista, 2) o estudo da composição de classe, que é localizar o sujeito revolucionário em potencial, 3) o estudo das leis tendenciais e do movimento do modo de produção capitalista como totalidade, sobretudo seu potencial de crise - a crise é a verdade do capitalismo e o outro lado da moeda da luta de classes.
Bertolt Brecht, 1936. Poesia, trad. André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 315.
Bologna, Sergio. Class composition and the Theory of the Party at the Origin of the Workers Councils Movement. Disponível em: http://zerowork.org/BolognaClassComposition.html. [1972].
Devo essa contraposição entre “comunismo da imanência” e “comunismo da transcendência” a Jasper Bernes. Em seu texto, The test of communism, ele sugere essa questão em várias passagens, como: “We can no doubt treat Capital as a grand analysis without presupposition, an immanent critique, a science, a research project, but certain key aspects will remain inscrutable, written in invisible ink that only the heat of communism can bring to the surface.” e, principalmente, “Communism cannot be derived logically from the presuppositions of capitalism. There is a missing moment, an absent positive, to the inversion of value. Indeed, that missing moment is what is fundamentally missing from life not just in capitalism but in all class society.”.
Amadeo Bordiga, Considerations on the party’s organic activity when the general situation is historically unfavourable, 1965.
Ibid.
Sobre isso, recomendo o artigo de Salar Mohandesi, Class consciousness or class composition?.
O longo processo pelo qual o capital decompõe o proletariado merece estudos detalhados, pertencendo tanto ao campo da política e do direito quanto da organização do processo imediato de produção. Autores tão diversos quanto Mario Tronti, Jacques Camatte e Bernard Edelman já abordaram, por diferente ângulos, essa questão.